Capítulo I
Lira I
Eu,
Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva
de guardar alheio gado;
De tosco
trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios
gelos, e dos sóis queimado.
Tenho
próprio casal, e nele assisto;
Dá-me
vinho, legume, fruta, azeite;
Das
brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as
finas lãs, de que me visto.
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!
Eu vi o
meu semblante numa fonte,
Dos anos
inda não está cortado:
Os
pastores, que habitam este monte,
Com tal
destreza toco a sanfoninha,
Que
inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som
dela concerto a voz celeste;
Nem canto
letra, que não seja minha,
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!
Mas tendo
tantos dotes da ventura,
Só apreço
lhes dou, gentil Pastora,
Depois
que teu afeto me segura,
Que
queres do que tenho ser senhora.
É bom,
minha Marília, é bom ser dono
De um
rebanho, que cubra monte, e prado;
Porém,
gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais
q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!
Os teus
olhos espalham luz divina,
A quem a
luz do Sol em vão se atreve:
Papoula,
ou rosa delicada, e fina,
Te cobre
as faces, que são cor de neve.
Os teus
cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo
corpo bálsamos vapora.
Ah! Não,
não fez o Céu, gentil Pastora,
Para
glória de Amor igual tesouro.
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!
Leve-me a
sementeira muito embora
O rio
sobre os campos levantado:
Acabe,
acabe a peste matadora,
Sem
deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes
bens, Marília, não preciso:
Nem me
cega a paixão, que o mundo arrasta;
Para
viver feliz, Marília, basta
Que os
olhos movas, e me dês um riso.
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!
Irás a
divertir-te na floresta,
Sustentada,
Marília, no meu braço;
Ali
descansarei a quente sesta,
Dormindo
um leve sono em teu regaço:
Enquanto
a luta jogam os Pastores,
E
emparelhados correm nas campinas,
Toucarei
teus cabelos de boninas,
Nos
troncos gravarei os teus louvores.
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!
Depois de
nos ferir a mão da morte,
Ou seja
neste monte, ou noutra serra,
Nossos
corpos terão, terão a sorte
De
consumir os dois a mesma terra.
Na campa,
rodeada de ciprestes,
Lerão
estas palavras os Pastores:
“Quem
quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os
exemplos, que nos deram estes.”
Graças,
Marília bela,
Graças à
minha Estrela!Lira II
Pintam, Marília, os Poetas
A um menino vendado,
Com uma aljava de setas,
Arco empunhado na mão;
Ligeiras asas nos ombros,
O tenro corpo despido,
E de Amor, ou de Cupido
São os nomes, que lhe dão.
Porém eu, Marília, nego,
Que assim seja Amor; pois ele
Nem é moço, nem é cego,
Nem setas, nem asas tem.
Ora pois, eu vou formar-lhe
Um retrato mais perfeito,
Que ele já feriu meu peito;
Por isso o conheço bem.
Os seus compridos cabelos,
Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos;
Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite;
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
Tem redonda, e lisa testa,
Arqueadas sobrancelhas;
A voz meiga, a vista honesta,
E seus olhos são uns sóis.
Aqui vence Amor ao Céu,
Que no dia luminoso
O Céu tem um Sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.
Na sua face mimosa,
Marília, estão misturadas
Purpúreas folhas de rosa,
Brancas folhas de jasmim.
Dos rubis mais preciosos
Os seus beiços são formados;
Os seus dentes delicados
São pedaços de marfim.
Mal vi seu rosto perfeito
Dei logo um suspiro, e ele
Conheceu haver-me feito
Estrago no coração.
Punha em mim os olhos, quando
Entendia eu não olhava:
Vendo o que via, baixava
A modesta vista ao chão.
Chamei-lhe um dia formoso:
Ele, ouvindo os seus louvores,
Com um gesto desdenhoso
Se sorriu, e não falou.
Pintei-lhe outra vez o estado,
Em que estava esta alma posta;
Não me deu também resposta,
Constrangeu-se, e suspirou.
Conheço os sinais, e logo
Animado de esperança,
Busco dar um desafogo
Ao cansado coração.
Pego em teus dedos nevados,
E querendo dar-lhe um beijo,
Cobriu-se todo de pejo,
E fugiu-me com a mão.
Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo,
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é Deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu.
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Texto completo disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000301.pdf
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