Grupo:
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Battista
Biografia:
Manuel
Botelho de Oliveira, advogado, político e poeta barroco de nacionalidade
portuguesa, nasceu em Salvador, no Brasil colônia em 1636, e viveu até 1711.
Ele foi o primeiro autor nascido no Brasil a ter um livro publicado. Filho de
um capitão de infantaria, cursou Direito na Universidade de Coimbra, em
Portugal. Foi ao retornar ao Brasil que passou a exercer a advocacia e foi
eleito vereador da Câmara de Salvador. Em 1694 tornou-se capitão-mor dos
distritos de Papagaio, Rio do Peixe e Gameleira. Ele conviveu com Gregório de
Matos e versou sobre os temas correntes da poesia de seu tempo.
A sua primeira obra foi Mal Amigo, escrita em 1663 e publicada em Coimbra. Mas
a sua principal obra é a coletânea de poemas Música do Parnaso, reunindo poemas
em português, castelhano, italiano, e latim, e duas comédias em espanhol (Hay
amigo para amigo e amor e Engaños y elos), que foi escrita em 1705 e publicada
em Lisboa, e foi responsável por torná-lo o primeiro autor nascido no Brasil a
ter um livro impresso. Na obra há destaque para o poema "À ilha de
Maré", a qual possui vocabulário típico dos barrocos, e é um dos primeiros
a louvar a terra e descrever com esmero sobre a variedade de frutos e legumes
brasileiros, lembrando sempre a inveja que fariam às metrópoles europeias.
Principal
obra:
·
À ilha de Maré
À ILHA DE MARÉ TERMO DESTA CIDADE DA BAHIA
SILVA
Jaz oblíqua forma e prolongada
a terra de Maré toda cercada
de Netuno, que tendo o amor constante,
lhe dá muitos abraços por amante,
e botando
lhe os braços dentro dela
a pretende gozar, por ser mui bela.
Nesta assistência tanto a senhoreia,
e tanto a galanteia,
que, do mar, de Maré tem o apelido,
como quem preza o
amor de seu querido:
e por gosto das prendas amorosas
fica maré de rosas,
e vivendo nas ânsias sucessivas,
são do amor marés vivas;
e se nas mortas menos a conhece,
maré de saudades lhe parece.
Vista por fora é pouco apetecida,
porque aos olhos por feia é parecida;
porém dentro habitada
é muito bela, muito desejada,
é como a concha tosca e deslustrosa,
que dentro cria a pérola fermosa.
Erguem-se nela outeiros
com soberbas de montes altaneiros,
que os vales por humildes desprezando,
as presunções do Mundo estão mostrando,
e querendo ser príncipes subidos,
ficam os vales a seus pés rendidos.
Por um e outro lado
vários lenhos se vêem no mar salgado;
uns vão buscando da Cidade a via,
outros dela se vão com alegria;
e na desigual ordem
consiste a fermosura na desordem.
Os pobres pescadores em saveiros,
em canoas ligeiros,
fazem com tanto abalo
do trabalho marítimo regalo;
uns as redes estendem,
e vários peixes por pequenos prendem;
que até nos peixes com verdade pura
ser pequeno no Mundo é desventura:
outros no anzol fiados têm
aos míseros peixes enganados,
que sempre da vil isca cobiçosos
perdem a própria vida por gulosos.
Aqui se cria o peixe regalado
com tal sustância, e gosto preparado,
que sem tempero algum para apetite
faz gostoso convite,
e se pode dizer em graça rara
que a mesma natureza os temperara.
Não falta aqui marisco saboroso,
para tirar fastio ao melindroso;
os polvos radiantes,
os lagostins flamantes,
camarões excelentes,
que são dos lagostins pobres parentes;
retrógrados cranguejos,
que formam pés das bocas com festejos,
ostras, que alimentadas
estão nas pedras, onde são geradas;
enfim tanto marisco, em que não falo,
que é vário perrexil para o regalo.
As plantas sempre nela reverdecem,
e nas folhas parecem,
desterrando do Inverno os desfavores,
esmeraldas de Abril em seus verdores,
e delas por adorno apetecido
faz a divina Flora seu vestido.
As fruitas se produzem copiosas,
e são tão deleitosas,
que como junto ao mar o sítio é posto,
lhes dá salgado o mar o sal do gosto.
As canas fertilmente se produzem,
e a tão breve discurso se reduzem,
que, porque crescem muito,
em doze meses lhe sazona o fruito,
e não quer, quando o fruto se deseja,
que sendo velha a cana, fértil seja.
As laranjas da terra
poucas azedas são, antes se encerra
tal doce nestes pomos,
que o tem clarificado nos seus gomos;
mas as de Portugal entre alamedas
são primas dos limões, todas azedas.
Nas que chamam da China
grande sabor se afina,
mais que as da Europa doces, e melhores,
e têm sempre a ventagem de maiores,
e nesta maioria,
como maiores são, têm mais valia.
Os limões não se prezam,
antes por serem muitos se desprezam.
Ah se Holanda os gozara!
Por nenhuma província se trocara.
As cidras amarelas
caindo estão de belas,
e como são
inchadas, presumidas,
é bem que estejam pelo chão caídas.
As uvas moscatéis são tão gostosas,
tão raras, tão mimosas;
que se Lisboa as vira, imaginara
que alguém dos seus pomares as furtara;
delas a produção por copiosa
parece milagrosa,
porque dando em um ano duas vezes,
geram dous partos, sempre, em doze meses.
Os melões celebrados
aqui tão docemente são gerados,
que cada qual tanto sabor alenta,
que são feitos de açúcar, e pimenta,
e como sabem bem com mil agrados,
bem se pode dizer que são letrados;
não falo em Valariça, nem Chamusca:
porque todos ofusca
o gosto destes, que esta terra abona
como próprias delícias de Pomona.
As melancias com igual bondade
são de tal qualidade,
que quando docemente nos recreia,
é cada melancia uma colmeia,
e às que tem Portugal lhe dão de rosto
por insulsas abóboras no gosto.
Aqui não faltam figos,
e os solicitam pássaros amigos,
apetitosos de sua doce usura,
porque cria apetites a doçura;
e quando acaso os matam
porque os figos maltratam,
parecem mariposas, que embebidas
na chama alegre, vão perdendo as vidas.
As romãs rubicundas quando abertas
à vista agrados são, à língua ofertas,
são tesouro das fruitas entre afagos,
pois são rubis suaves os seus bagos.
As fruitas quase todas nomeadas
são ao Brasil de Europa trasladadas,
por que tenha o Brasil por mais façanhas
além das próprias fruitas, as estranhas.
E tratando das próprias, os coqueiros,
galhardos e frondosos
criam cocos gostosos;
e andou tão liberal a natureza
que lhes deu por grandeza,
não só
para bebida, mas sustento,
o néctar doce, o cândido alimento.
De várias cores são os cajus belos,
uns são vermelhos, outros amarelos,
e como vários são nas várias cores,
também se mostram vários nos sabores;
e criam a castanha,
que é melhor que a de Franç
a, Itália, Espanha.
As pitangas fecundas
são na cor rubicundas
e no gosto picante comparadas
são de América ginjas disfarçadas.
As pitombas douradas, se as desejas,
são no gosto melhor do que as cerejas,
e para terem o primor inteiro,
a ventagem lhes levam pelo cheiro.
Os araçazes grandes, ou pequenos,
que na terra se criam mais ou menos
como as pêras de Europa engrandecidas,
com elas variamente parecidas,
de várias castas marmeladas belas.
As bananas no Mundo conhecidas
por fruto e mantimento apetecidas,
que o céu para regalo e passatempo
liberal as concede em todo o tempo,
competem com maçãs, ou baonesas
com peros verdeais ou camoesas.
Também servem de pão aos moradores,
se da farinha faltam os favores;
é conduto também que dá sustento,
como se fosse próprio mantimento;
de sorte que por graça, ou por tributo,
é fruto, é como pão, serve em conduto.
A pimenta elegante
é tanta, tão diversa, e tão picante,
para todo o tempero acomodada,
que é muito aventajada
por fresca e por sadia
à que na Asia se gera, Europa cria.
O mamão por freqüente
se cria vulgarmente,
e não o preza o Mundo,
porque é muito vulgar em ser fecundo.
O marcujá também gostoso e frio
entre as fruitas merece nome e brio;
tem nas pevides mais gostoso agrado,
do que açúcar rosado;
é belo, cordial, e como é mole,
qual suave manjar todo se engole.
Vereis os ananases,
que para rei das fruitas são capazes;
vestem-se de escarlata
com majestade grata,
que para ter do Império a gravidade
logram da croa verde a majestade;
mas quando têm a croa levantada
de picantes espinhos adornada,
nos mostram que entre Reis, entre Rainhas
não há croa no Mundo sem espinhas.
Este pomo celebra toda a gente,
é muito mais que o pêssego excelente,
pois lhe leva aventagem gracioso
por maior, por mais doce, e mais cheiroso.
Além das fruitas, que esta terra cria,
também não faltam outras na Bahia;
a mangava mimosa
salpicada de tintas por fermosa,
tem o cheiro famoso,
como se fora almíscar oloroso;
produze-se no mato
sem querer da cultura o duro trato,
que como em si toda a bondade apura,
não quer dever aos homens a cultura.
Oh que galharda fruita, e soberana
sem ter indústria humana,
e se Jove as tirara dos pomares,
por ambrósia as pusera entre os manjares!
Com a mangava bela a semelhança
do macujé se alcança;
que também se produz no mato inculto
por soberano indulto:
e sem fazer ao mel injusto agravo,
na boca se desfaz qual doce favo.
Outras fruitas dissera, porém, basta
das que tenho descrito a vária casta;
e vamos aos legumes, que plantados
são do Brasil sustentos duplicados:
os mangarás que brancos, ou vermelhos,
são da abundância espelhos;
os cândidos inhames, se não minto,
podem tirar a fome ao mais faminto.
As batatas, que assadas, ou cozidas
são muito apetecidas;
delas se faz a rica batatada
das Bélgicas nações solicitada.
Os carás, que de roxo estão vestidos,
são lóios dos legumes parecidos,
dentro são alvos, cuja cor honesta
se quis cobrir de roxo por modesta.
A mandioca, que Tomé sagrado
deu ao gentio amado,
tem nas raízes a farinha oculta:
que sempre o que é feliz, se dificulta.
E parece que a terra de amorosa
se abraça com seu fruto deleitosa;
dela se faz com tanta atividade
a farinha, que em fácil brevidade
no mesmo dia sem trabalho muito
se arranca, se desfaz, se coze o fruito;
dela se faz também com mais cuidado
o beiju regalado,
que feito tenro por curioso amigo
grande ventagem leva ao pão de trigo.
Os aipins se aparentam
coa mandioca, e tal favor alentam,
que tem qualquer, cozido, ou seja assado,
das castanhas da Europa o mesmo agrado.
O milho, que se planta sem fadigas,
todo o ano nos dá fáceis espigas,
e é tão fecundo em um e em outro filho,
que são mãos liberais as mãos de milho.
O arroz semeado
fertilmente se vê multiplicado;
cale-se de Valença, por estranha
o que tributa a Espanha,
cale-se do Oriente
o que come o gentio, e a lísia gente;
que o do Brasil quando se vê cozido
como tem mais substância, é mais crescido.
Tenho explicado as fruitas e legumes,
que dão a Portugal muitos ciúmes;
tenho recopilado
o que o Brasil contém para invejado,
e para preferir a toda a terra,
em si perfeitos quatro AA encerra.
Tem o primeiro A, nos arvoredos
sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
tem o segundo A, nos ares puros
na tempérie agradáveis e seguros;
tem o terceiro A, nas águas frias,
que refrescam o peito, e são sadias;
o quatro A, no açúcar deleitoso,
que é do Mundo o regalo mais mimoso.
São pois os quatro AA por singulares
Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.
Nesta ilha está mui ledo, e mui vistoso
um Engenho famoso,
que quando quis o fado antigamente
era Rei dos engenhos preminente,
e quando Holanda pérfida e nociva
o queimou, renasceu qual Fênix viva.
Aqui se fabricaram três capelas
ditosamente belas,
uma se esmera em fortaleza tanta,
que de abóbada forte se levanta;
da Senhora das Neves se apelida,
renovando a piedade esclarecida,
quando em devoto sonho se viu posto
o nevado candor no mês de agosto.
Outra capela vemos fabricada,
A Xavier ilustre dedicada,
que o Maldonado Pároco entendido
este edifício fez agradecido
a Xavier, que foi em sacro alento
glória da Igreja, do Japão portento.
Outra capela aqui se reconhece,
cujo nome a engrandece,
pois se dedica à Conceição sagrada
da Virgem pura sempre imaculada,
que foi por singular e mais fermosa
sem manchas lua, sem espinhos rosa.
Esta Ilha de Maré, ou de alegria,
que é termo da Bahia,
tem quase tudo quanto o Brasil todo,
que de todo o Brasil é breve apodo;
e se algum-tempo Citeréia a achara,
por esta sua Chipre desprezara,
porém tem com Maria verdadeira
outra Vênus melhor por padroeira.
Em À Ilha de Maré, o poeta destaca, em linguagem típica barroca cheia de
analogias e contrastes e com grande amor ao Brasil, a exaltação dos produtos
brasileiros (frutos e legumes) colocando em contrapartida, que na Europa
(Portugal especificamente) nunca esbanjaria uma variedade tão rica e bela. O
texto retrata a ilha da Bahia fazendo analogias com claros detalhes para
maravilhar o leitor que a ilha é uma terra receptiva, amorosa e fértil. Fala
também de seus engenhos de açúcar e cita a invasão holandesa.
Palavras
da crítica:
- Alfredo Bosi
[...]
Costuma-se lembrar de Botelho de Oliveira o poema À Ilha da Maré - Termo desta
Cidade da Bahia, em tudo gongórico, e que tem sido destacado da Música do
Parnaso por mera razão de assunto: descreve um recanto da paisagem baiana e
alonga-se na exaltação do clima, dos animais, das frutas. O critério
nativista privilegiou esses versos ( que não raro afloram o ridículo ) vendo
nos encômios aos melões e às pitombas um traço para afirmar o progresso da
nossa consciência literária em detrimento da Metrópole. Mas um critério formal
rigoroso não chegaria por certo às mesmas conclusões.
- Adma Muhana
Muitos outros poemas em que o
“estilo florido” se converte em própria matéria poética poderiam ser citados,
mas destaco apenas aquele em que, por evidente, a noção sobressai. De forma excelente,
ela se concentra na célebre silva À ilha de Maré, em que muitos viram
nativismo, que muitos refutaram, e cujos versos ambos os lados desprezaram.
A imagem da Ilha de Maré na
“silva” de Botelho de Oliveira tem como fontes, contrafeitas, o “jardim das
delícias” da ilha de Chipre, morada de Vênus, no canto VII do Adone de Marino,
bem como a “ilha namorada”, no canto IX d’Os Lusíadas de Camões. Porém, todos
os confrontos entre as delícias da ilha do Recôncavo e aquelas encontradas nas
outras partes do mundo dos antigos, cujo paragone resulta sempre na
superioridade dos elementos presentes em Maré, estão emoldurados pelo cotejo
final entre a deusa do amor pagã e a do amor cristão, com predomínio, evidente,
da última, deusa do amor casto e virtuoso, porque verdadeiro, de nome derivado
do próprio mar, “Maria”:
E se algum tempo Citereia a
achara, Por esta sua Chipre desprezara, Porém tem com Maria verdadeira Outra
Vênus melhor por padroeira.
Por isso, o poema todo há de ser
lido como uma comparação epidítica que não visa senão ao elogio da ilha da
Bahia, mostrada como uma maravilha, cuja sobrenaturalidade é fruto da bênção
divina e não franqueia os limites do verossímil. Não se trata, portanto, de uma
fantasia inverossímil, incongruente, como as dos mitos e feitiçarias, seja da
antiguidade pagã, seja da medievalidade. Em suas linhas principais, o poema
consiste em uma descriptio da ilha de Maré, o que desde o título e na estrofe
final se justifica por ser ela termo da cidade da Bahia, resumo ou apodo do Brasil.
Ser uma descriptio, já se sabe, significa desde logo pôr sob luz brilhante e
admirável tudo o que, na descrição, possa adornar a coisa descrita de
qualidades e virtudes, produzindo o seu louvor. A descriptio é antes de tudo
uma figura da evidentia. Assim, a descrição evidencia as belezas da ilha com
ostensão, mediante hipotiposes, mostrando-as presencialmente e como que
tornando o leitor um espectador delas: como num teatro, estupefacto como em
frente a uma pintura, no tempo presente da enunciação. Não há uma narração de
coisas passadas, mas tudo se passa como se à vista do leitor, aprisionado na
paisagem pela insistência do dêitico aqui, isto é, neste lugar e momento: Aqui
se cria o peixe regalado; Não falta aqui marisco saboroso; Os melões [...] aqui
são gerados; Aqui não faltam figos; Aqui se fabricaram três capelas; Outra
capela aqui se reconhece. Etc.
Para tanto, Botelho de Oliveira
segue rigoroso as recomendações das Instituições oratórias de Quintiliano
acerca da demonstração epidítica de um locus (no Livro III, cap.7) começando
por definir a ilha, o que faz com uma pretensa etimologia motivada: é uma terra
rodeada por mar e daí seu nome, “Maré”. Essa designação, porém, em nosso culto
autor, é fonte de mais de um tropo, pois maré é nome derivado, metaforicamente,
do deus do mar que rodeia a ilha, Netuno. O envolvimento da ilha pelo mar dá
razão a nova metáfora, ao trazer o poeta, já na primeira estrofe, a imagem dum
amante que abraça e penetra a amada – já que a lírica, ora, trata justamente de
deleites. Afirmando
ser recíproco o amor entre a ilha
e o mar, seu nome se justifica, amplificadamente, nas diversas expressões com
que se significam aspectos desse amor: ilha de maré de rosas (pelas
despreocupadas alegrias do amor); ilha de marés vivas (pelas ondas cheias com
que o mar a invade); ilha de marés mortas (quando a água do mar, afastando-se
da terra, provoca-lhe saudades). Todas essas figuras caracterizam, numa
linguagem afetiva – sensualíssima – a ilha como uma terra receptiva, amorosa e
fértil.
Jaz em oblíqua forma e prolongada
A terra de Maré toda cercada De Netuno, que tendo o amor constante, Lhe dá
muitos abraços por amante, E botando-lhe os braços dentro dela A pretende
gozar, por ser mui bela. Nesta assistência tanto a senhoreia, E tanto a galanteia,
Que, do mar, de Maré tem o apelido, Como quem preza o amor de seu
querido: E por gosto das prendas amorosas Fica maré de rosas, E vivendo
nas ânsias sucessivas, São do amor marés vivas; E se nas mortas menos a
conhece, Maré de saudades lhe parece.
Além disso, a descrição da ilha é
feita de modo a conter uma narração, em que a clareza das imagens, novamente,
se destina a provocar afetos e deleites, sem se pôr a serviço do docere, isto
é, de ensinar a qualquer leitor desavisado o que seja a ilha de Maré. Por essa
razão, são descabidas discussões, com base no poema, a respeito da inexistência
ou existência de figos e melões e uvas no Recôncavo da Bahia no Seiscentos! Por
meio de um belo artifício, o poeta – senhor de (alto) engenho – faz como se a
visão da ilha fosse oferecida a partir de um ponto no mar, por alguém dela se
aproximando devagar (num barco...), podendo assim ver sucessiva e
admiradamente, do mais amplo ao particular, do contorno ao interior, como com
uma luneta, sua forma oblíqua, espraiada à tona d’água, seus outeiros, as
canoas e os saveiros à sua volta, os pescadores dentro deles a lançar redes e
anzóis, os peixes e mariscos que apanham, a verdura da terra, as frutas, os
legumes no solo, as construções que se distinguem na paisagem: um engenho, três
capelas.
Este modo se descrever, centrado
nos procedimentos amplificativos como meios de suscitar os afetos, em que o
acento recai no fingimento de presença dramática, transformando ouvintes e
leitores em espectadores ativos, caracteriza uma ecfrase: “técnica de produzir
enunciados que têm enargeia, presentando a coisa quase como se o ouvido a visse
em detalhe”, segundo a definição de Hermógenes discutida por João Adolfo HANSEN
(2006, p.85). Por essa descriptio estimar não um ensinamento, mas um encanto,
não um realismo, mas uma composição poética maravilhosa, a aparência da ilha se
mimetiza em caráter, a reproduzir a Moral do império do qual a ilhota é parte –
privilegiada, como foi dito, por ser sua síntese melhor. Se exteriormente
parece feia, o é do mesmo modo que a concha, que guarda em si a pérola fermosa;
se tem outeiros, é por que neles se mostram as presunções do mundo; se,
finalmente, na azáfama dos barcos que sulcam a baía, uns vão buscando da Cidade
a via e outros dela se vão com alegria, é porque na desigual ordem / consiste a
fermosura na desordem. A ilha é um mundo abreviado, mas inteiro, uno na sua
semelhança com o Mundo criado, em que se há de desconfiar das aparências, em
que até nos peixes com verdade pura / ser pequeno [...] é desventura, e em que,
finalmente, em suas diferenças, se compõe a harmonia da natureza, vária e
antitética.
Tal variedade, razão da
formosura, é o que a descriptio em que consiste o poema focaliza. O deambular
do olhar, envolvendo e particularizando os elementos admiráveis da ilha,
intensifica o caráter digressivo da descrição, propiciando a exposição
minuciosa e plural de cada elemento do conjunto, em suas qualidades
susceptíveis de causar espanto e maravilhar o leitor – sempre desejoso de ser
deleitado. Assim se há de entender o catálogo de peixes e mariscos, em que o
sentido (inteligível, é claro) do paladar é afetado por uma série de adjetivos
que lhe correspondem: regalo, regalado, sustância, gosto, gostoso, tempero,
temperado, apetite, convite, saboroso, fastio...
E assim também o extenso catálogo
de frutas e legumes que ocupa a maior parte do poema, numa gala de termos raros
e sonoros, luxuosos como convém à primavera dessa ilha, em que as folhas verdes
brilham sem cessar, esmeraldas de abril. Esse catálogo de vegetais da silva
(por outro nome, “selva”), é subdividido em três: o das frutas importadas, o
das naturais e o das raízes. Entre as frutas do primeiro catálogo, a cana-de-açúcar
dulcíssima é a primeira a ser mencionada, como era de se esperar; das demais,
cada uma é comparada às da terra de origem, mostrando vantagem, seja pela
doçura (as “laranjas da terra” e os figos), seja pelo tamanho (as “laranjas da
China”), seja pela quantidade (os limões), pela beleza (as cidras), pelo número
das colheitas (as uvas moscatéis), pelo sabor (os melões), pela qualidade (as
melancias), pela cor (as romãs).
No segundo catálogo, os
principais termos de comparação referem-se ao sabor, o odor, a cor e o tato das
frutas “próprias” em relação àquelas que frutificam apenas na Europa: a
castanha do caju é melhor que a de França, Itália, Espanha; as pitombas são no
gosto melhor do que as cerejas; as bananas competem com maças, ou baonesas, /
com peros verdeais ou camoesas; o marcujá como é mole, / qual suave manjar todo
se engole; a mangaba tem o cheiro famoso, como se fora almíscar oloroso; enfim,
o ananás, que é muito mais que o pêssego excelente [...] por maior, por mais
doce, e mais cheiroso. Estabelecendo a comparação com frutos europeus tidos por
excelentes, Botelho de Oliveira não só logra trazê-los ao seu poema,
multiplicando, por assim dizer, a variedade dos que arrola, como também
superlativiza as plantas da terra pelo confronto com as estranhas. O cromatismo
também é rico, e encarece o espectro de prazeres que podem suscitar as frutas,
segundo o sentido (inteligível, novamente) da visão: cajus belos, vermelhos,
amarelos; pitangas rubicun
das; pitombas douradas; maracujá
mais do que açúcar rosado; mangaba salpicada de tintas. E o mesmo em relação
aos legumes: mangarás brancos ou vermelhos; inhames cândidos, carás roxos
etc.
Sob a denominação de “legumes”,
por fim, Botelho de Oliveira inclui raízes como mangarás, batatas, inhames,
carás e aipins, com destaque para a mandioca e sua farinha, bem como o milho e
o arroz, os quais todos são do Brasil sustentos duplicados. Aqui, o principal
termo que os reúne, mas do que as belezas sensíveis que predominam entre as
frutas, é a utilidade para a alimentação: os inhames podem tirar a fome ao mais
faminto; das batatas se faz a rica batatada, / das Bélgicas nações solicitada;
da farinha de mandioca faz-se o beiju, que grande ventagem leva ao pão de trigo
etc. Todo este rol de “frutos da terra”, em sua variedade, são partes da dita
formosura da ilha, a qual, naturalmente, assim é por serem honestos seus
prazeres. A riqueza, suavidade, beleza, paladar, tato, odor, que cada um deles
e seu conjunto oferecem aos sentidos, concorrem para o elogio da ilha, qualificando-a
como doce e útil; o poema, por sua vez, imitando-lhe doçuras e utilidades,
ofício maior do engenho poético, deleita e instrui o leitor maravilhado, bem
aprendido e desviado paradigma horaciano.
Um único sentido, o da audição,
pareceria estar ausente nesse fausto de delícias, não soubéssemos que a
sonoridade rara – e melodiosa – de tais frutas e legumes naturais da terra até
hoje são capazes de estranhar agradavelmente os ouvidos, mesmo, é claro, numa
leitura silenciosa: mangava, macujé, mangará, cará, inhame, beiju, aipim...
A natureza da ilha é sintetizada
nos ciúmes e invejas que, por esses bens, o Brasil causa a Portugal, e é causa
de ter sido acometida por holandeses (Ah se Holanda os gozara!). A síntese se
materializa nos quatro elementos em que ela excele, coincidindo seus AA com
suas virtudes: Arvoredos sempre verdes, Ares puros, Águas sadias, Açúcar
deleitoso.
Tenho explicado as fruitas
e legumes Que dão a Portugal muitos ciúmes; Tenho recopilado O que o Brasil
contém para invejado, E para preferir a toda a terra, Em si perfeitos quatro AA
encerra. Tem o primeiro A, nos arvoredos Sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
Tem o segundo A, nos ares puros Na tempérie agradáveis e seguros; Tem o
terceiro A, nas águas frias, Que refrescam o peito, e são sadias; O quarto A,
no açúcar deleitoso, Que é do Mundo o regalo mais mimoso.
A representação das letras como
signos de realidades essenciais é um lugar comum, que recupera sofisticamente
noções já vistas da potência sonora como semelhança conceitual. Isso ocorre até
nos primeiros cronistas do Brasil, que repetem com insistência a máxima de que
as diversas línguas dos índios do Brasil não têm, nenhuma delas, nem F, nem L,
nem R – evidência de nenhum deles poderem ter Fé, Lei, ou Rei. Aqui, o poeta
usa o mesmo procedimento de tomar a letra A como signo dos conceitos elegidos,
porém não para vituperar, e sim para fazer uma súmula do elogio à ilha, que em
si perfeitos quatro AA encerra. A letra A é primeira em todos os alfabetos,
dizem, a primeira de todos os homens, também expiração de Deus – que se diz
Alfa e Ômega. Certamente, as árvores, os ares e as águas insignes demonstram
por si dádivas divinas à ilha, que a tornam maravilhosa em seus elementos
naturais; mas a perfeição última é dada pelo açúcar, produto do labor e do
artifício humano, cuja fartura, riqueza e doçura excepcionais são permitidas
pela divindade para completude da glória da ilha e seu louvor. Por essa razão,
o engenho famoso que aí existia, destruído pelos batavos hereges que a
cobiçavam e a todo o Brasil, renasceu em seguida, Fênix católica. Tornada
templo divino toda a ilha, portanto, o reconhecimento visível da fé é dado
pelos homens que nela não descuidaram de construir três capelas, ditosamente
belas, dedicada uma a Nossa Senhora das Neves, outra a São Francisco Xavier e a
terceira a Nossa Senhora da Conceição.
Deste modo, todos os deleites
exuberantes da ilha de Maré se mostram coniventes com a virtude católica,
ibérica. Vênus, Apolo e suas Musas são alegorias, ao passo que Maria é
padroeira da poesia e do amor verdadeiros. As cores, sabores e odores raros,
imitados numa locução distinta e harmoniosa, que procura se assemelhar às
coisas extraordinárias e felizes que descreve, são mostras dos benefícios
divinos derramados sobre a cidade do Salvador, a qual reverencia a Fé, obedece
à Lei, se submete a seu Rei. Se delectare admiravelmente é o efeito último
almejado em poemas encomiásticos como esse, tal deleite se reveste, por sua
vez, de uma eficácia precisa, em termos de adequação e conjunção ao Império e à
Igreja.
Bibliografia:
Wikipedia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Botelho_de_Oliveira
Poesia: À
ilha de Maré, de Manuel Botelho de Oliveira
in Poesia Barroca, org. por Péricles Eugênio da Silva Ramos. Edições
Melhoramentos, São Paulo, 1967.
BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. 2° ed, 5°
impressão São Paulo: Cultrix, 1975.
MUHANA, A. A “maravilha” na poesia de Manuel Botelho de Oliveira. Per
Musi, Belo Horizonte, n.24, 2011, p.35-42.
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