“Também
no Caramuru de Fr. José de Santa Rita
Durão o índio é matéria-prima para exemplificar certos padrões ideológicos. Mas
será uma corrente oposta à de Basílio, voltada para o passado jesuítico
colonial, e em aberta polêmica com o século das luzes:
Poema
ordenado a pôr diante dos olhos aos Libertinos o que a natureza inspirou a
homens, que viviam tão remotos das que eles chamavam “preocupações de espírito
débeis”.
(Reflexões Prévias e
Argumentos)
Se,
pela cópia de alusões à flora basílica e aos costumes indígenas, o Caramuru parece dotado de índole mais
nativista do que o Uraguai, no cerne
das intenções e na estrutura, a epopéia de Durão está muito mais distante do
homem americano do que o poemeto de Basílio. O frade agostinho via os
Tupinambás sub specie Theologiae,
como almas capazes de ilustrar para os libertinos europeus a verdade dos dogmas
católicos.
O
índio como o outro, objeto de
colonização e catequese, perde no Caramuru
toda autenticidade étnica e regride ao marco zero de espanto (quando
antropófago), ou a exemplo de edificação (quando religioso).
[...]
É
verdade que a polêmica antilibertina urgia mais no espírito do poeta do que o
horror às práticas nativas, pois, tendo clamado contra estas, dá um passo atrás
e considera nos maus filósofos efeitos piores que os da antropofagia:
Feras! Mas feras não; que mais monstruosos
São das nossas almas os bárbaros efeitos;
E em
corrupta razão mais furor cabe
Que
tanto um bruto imaginar não sabe
(C. 1,25)
E, no outro extremo, as palavras do selvagem
que diz ao missionário já ter recebido em sonho, “como em sombra mal formada”,
a essência da doutrina cristã (I, 45-59).
A
poética que presidiu à feitura do poema era híbrida. De um lado, esquemas
camonianos, “corrigidos” pela presença exclusiva do maravilhoso cristão. De
outro, a tradição colonial-barroca que se reflete no gosto das enumerações
profusas da flora tropical hauridas no ultragongórico Rocha Pita. O uso do
maravilhoso cristão e o desejo de superar em coerência. [...] Durão escreve
atento aos conselhos de José Agostinho de Macedo, polemista vitrioloso que
endossou todas as teses retrógradas da “viradeira”, mas que conservou do
Iluminismo o cânone da verossimilhança. Nada lhe parecia mais insensato do que
empregar um poeta batizado os disfarces do panteão helênico. E o mesmo
argumento, na verdade extra-estético, serviria aos românticos de estirpe
medievista, como Chateaubriand e Scott, para repudiar todo recurso à mitologia
pagã e empreender a construção da epopéia bíblico-medieval. Nesse ponto. Durão antecipa certas atitudes
românticas voltadas contra a impiedade dos ilustrados mais radicais.
Outro
problema a considerar é a fortuna crítica do Caramuru que, pouco estimado na época de sua publicação, foi
erigido em ancestral do Indianismo pelos nossos românticos por motivos
estreitamente nacionalistas.
O herói
do poema é Diogo Álvares, alcunhado o Caramuru
pelos Tupinambás (Durão traduz o termo por “filho do trovão”) e responsável
pela primeira ação colonizadora na Bahia. Menos heróis de luta do que herói
cultural, ele é o fundador, o homem providencial que ensinou ao bárbaro as
virtudes e as leis do alto. Como no Enéias virgiliano e no Godofredo tassesco,
a sua grandeza reside na vida reta e na constância de animo:
De um
varão em mil casos agitado
Que as
praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o Recôncavo afirmado
Da
capital basílica potente:
Do
Filho do Trovão denominado,
Que o
peito domar soube à fera gente;
O valor
cantarei na adversa sorte,
Pois
só conheço Herói quem nela é forte.
(Canto I, 1)
Domando a “fera gente” e as próprias paixões, Diogo é misto de colono
português e missionário jesuíta, síntese que não convence os conhecedores da
história, mas que dá a medida justa dos valores de Frei José de Santa Rita
Durão. Na medida em que o herói encarna, aliás ossifica tais valores, ele se
enrijece e acaba perdendo toda capacidade de ativar a trama épica. Salvo o
episódio transmitido pela lenda, em que o náufrago passa a senhor dos índios
fazendo fogo com o seu fuzil (II, 44), proeza repetida na luta contra Jararaca
(IV, 66), a ação é antes sofrida do que empuxada por Diogo-Caramuru. De resto essa paralisia é sempre razão do
louvor setecentista ao herói civil e pacífico, tanto mais que este já alcançou,
mediante expedientes mágicos (e aqui se regride ao barroco), formas douradoras
de dominação.
[...]
A
partir do Canto VI, tudo é descritivo. Durão cede a tendência retrospectiva da
epopéia clássica espraiando-se na crônica do descobrimento e das riquezas
coloniais, não esquecidas as glórias do apostolado jesuítico.”
Bibliografia (páginas: 68-70)
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