domingo, 4 de dezembro de 2016

Crítica Caramuru de Santa Rita Durão feita por Alfredo Bosi


    “Também no Caramuru de Fr. José de Santa Rita Durão o índio é matéria-prima para exemplificar certos padrões ideológicos. Mas será uma corrente oposta à de Basílio, voltada para o passado jesuítico colonial, e em aberta polêmica com o século das luzes:
 Poema ordenado a pôr diante dos olhos aos Libertinos o que a natureza inspirou a homens, que viviam tão remotos das que eles chamavam “preocupações de espírito débeis”.
                                                                 (Reflexões Prévias e Argumentos)

     Se, pela cópia de alusões à flora basílica e aos costumes indígenas, o Caramuru parece dotado de índole mais nativista do que o Uraguai, no cerne das intenções e na estrutura, a epopéia de Durão está muito mais distante do homem americano do que o poemeto de Basílio. O frade agostinho via os Tupinambás sub specie Theologiae, como almas capazes de ilustrar para os libertinos europeus a verdade dos dogmas católicos.
     O índio como o outro, objeto de colonização e catequese, perde no Caramuru toda autenticidade étnica e regride ao marco zero de espanto (quando antropófago), ou a exemplo de edificação (quando religioso).
[...]
     É verdade que a polêmica antilibertina urgia mais no espírito do poeta do que o horror às práticas nativas, pois, tendo clamado contra estas, dá um passo atrás e considera nos maus filósofos efeitos piores que os da antropofagia:

                                           Feras! Mas feras não; que mais monstruosos
                                           São das nossas almas os bárbaros efeitos;
                                           E em corrupta razão mais furor cabe
                                           Que tanto um bruto imaginar não sabe
                                                         
                                                                                       (C. 1,25)

     E, no outro extremo, as palavras do selvagem que diz ao missionário já ter recebido em sonho, “como em sombra mal formada”, a essência da doutrina cristã (I, 45-59).
     A poética que presidiu à feitura do poema era híbrida. De um lado, esquemas camonianos, “corrigidos” pela presença exclusiva do maravilhoso cristão. De outro, a tradição colonial-barroca que se reflete no gosto das enumerações profusas da flora tropical hauridas no ultragongórico Rocha Pita. O uso do maravilhoso cristão e o desejo de superar em coerência. [...] Durão escreve atento aos conselhos de José Agostinho de Macedo, polemista vitrioloso que endossou todas as teses retrógradas da “viradeira”, mas que conservou do Iluminismo o cânone da verossimilhança. Nada lhe parecia mais insensato do que empregar um poeta batizado os disfarces do panteão helênico. E o mesmo argumento, na verdade extra-estético, serviria aos românticos de estirpe medievista, como Chateaubriand e Scott, para repudiar todo recurso à mitologia pagã e empreender a construção da epopéia bíblico-medieval.   Nesse ponto. Durão antecipa certas atitudes românticas voltadas contra a impiedade dos ilustrados mais radicais.
     Outro problema a considerar é a fortuna crítica do Caramuru que, pouco estimado na época de sua publicação, foi erigido em ancestral do Indianismo pelos nossos românticos por motivos estreitamente nacionalistas.
     O herói do poema é Diogo Álvares, alcunhado o Caramuru pelos Tupinambás (Durão traduz o termo por “filho do trovão”) e responsável pela primeira ação colonizadora na Bahia. Menos heróis de luta do que herói cultural, ele é o fundador, o homem providencial que ensinou ao bárbaro as virtudes e as leis do alto. Como no Enéias virgiliano e no Godofredo tassesco, a sua grandeza reside na vida reta e na constância de animo:

                                        De um varão em mil casos agitado
                                        Que as praias discorrendo do Ocidente,
                                        Descobriu o Recôncavo afirmado
                                        Da capital basílica potente:
                                        Do Filho do Trovão denominado,
                                        Que o peito domar soube à fera gente;
                                        O valor cantarei na adversa sorte,
                                         Pois só conheço Herói quem nela é forte.

                                             (Canto I, 1)

    Domando a “fera gente” e as próprias paixões, Diogo é misto de colono português e missionário jesuíta, síntese que não convence os conhecedores da história, mas que dá a medida justa dos valores de Frei José de Santa Rita Durão. Na medida em que o herói encarna, aliás ossifica tais valores, ele se enrijece e acaba perdendo toda capacidade de ativar a trama épica. Salvo o episódio transmitido pela lenda, em que o náufrago passa a senhor dos índios fazendo fogo com o seu fuzil (II, 44), proeza repetida na luta contra Jararaca (IV, 66), a ação é antes sofrida do que empuxada por Diogo-Caramuru.  De resto essa paralisia é sempre razão do louvor setecentista ao herói civil e pacífico, tanto mais que este já alcançou, mediante expedientes mágicos (e aqui se regride ao barroco), formas douradoras de dominação.
[...]

     A partir do Canto VI, tudo é descritivo. Durão cede a tendência retrospectiva da epopéia clássica espraiando-se na crônica do descobrimento e das riquezas coloniais, não esquecidas as glórias do apostolado jesuítico.” 

Bibliografia   (páginas: 68-70)

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