“ O herói de Durão
se vincula tanto à tradição histórica quanto à linguística. [...] Fonte de
civilização e fonte da nobreza local, Diogo se valeu de alegados direitos da
mulher para obter e ceder à Coroa largos tratos de gleba. [...] Em resumo, o
herói se comporta como um jovem adepto de São Luís Gonzaga, quebrado pela
educação da contra-reforma e ajudado pelo amparo divino: Mas desde o Céu a
Santa Inteligência Com doce inspiração mitiga a chama; Onde a amante paixão
ceda à prudência, e a razão pode mais, que a ardente flama. (II, 83).
Este comportamento exemplar acentua a sua
mediocridade como personagem, isento de erros normais em heróis de epopéia, [...]
da nossa colonização, o Caramuru confirma a regra. Durão celebra-a quando o domínio
português no Brasil começava dar os primeiros sinais de declínio, e o próprio
sistema colonial entrava em contradição com as realidades locais. [...] Mas
convém sublinhar que Durão exaltava a obra colonizadora principalmente na
medida em que era uma empresa religiosa, uma incorporação do gentio ao universo
da fé católica.
Entre os estímulos que o levaram a escrever o
poema, talvez esteja o intuito de replicar ao Uraguai, de Basílio da Gama
(1769), que apresentara a catequese dos jesuítas como acervo de iniquidades,
dentro da linha de propaganda pombalina a que obedecia. Durão quis mostrar, ao
contrário, que a civilização se identificava ao catolicismo e era devida ao
catequizador, — em particular ao jesuíta. [...] Trata-se, portanto, de uma
epopéia eminentemente religiosa, antipombalina, em que até na forma o autor se
mostra passadista, ao repudiar o verso branco, tão prezado pelos seus
contemporâneos, para voltar aos processos camonianos. [...]
O segundo elemento
básico é a visão grandiosa e eufórica da natureza do país, que funciona como
cenário digno de grandes feitos e acrescenta mais uma dimensão às proporções da
epopéia. A este propósito, convém estabelecer algumas correlações entre a
técnica de Durão e o tópico do locus amoenus, estudado por Curtius. [...] No
Caramuru, todavia, há uma generalização desta prática, pois o poeta amplia o
lugar de maravilhas até fazê-lo coincidir com todo o país e, deste modo,
descaracterizar a sua função [...], isto se vinha efetuando na visão que os
portugueses manifestaram do Brasil, desde o século XVI [...].
O terceiro
elemento básico do Caramuru é o homem natural, o índio, que aparece vivendo,
sob certos aspectos, num estado de pureza cuja perfeição o europeu admira, não
custando ver que os seus princípios morais e a conduta decorrente são uma
espécie de depuração dos ideais do branco (CANTO III) [...].
A literatura é essencialmente uma reorganização
do mundo em termos de arte; [...] Durão fez esta recomposição do mundo por meio
de dados tomados de segunda mão aos cronistas, para chegar a uma certa visão. O
seu princípio organizador (digamos pela última vez) foi a interpretação
religiosa, que começa pela visão paradisíaca, sugere o problema do mérito do
homem que desfruta o paraíso, sem estar para isto espiritualmente qualificado,
e chega aos esforços para a justificação temporal deste paraíso, através da
implantação da fé católica. Estes
elementos são vivificados, no plano da ação épica, pela presença de um
personagem simbólico, que une as duas culturas, os dois continentes, as duas
realidades humanas, — Diogo-Caramuru, — cuja caracterização permitirá completar
a análise estrutural anterior e preparar o entendimento da função do poema.
Neste sentido, enumeremos as seguintes hipóteses:
1) a importância da obra de Durão, no Romantismo, vem, sob
certos aspectos, da ambiguidade da situação narrativa, em geral, e do herói, em
particular;
2) da ambiguidade deste provém a sua força como personagem;
3) desta força provém o seu caráter de paradigma, graças ao
qual pôde identificar-se, em plano profundo, à própria essência da civilização
brasileira.
Qualquer leitura
atenta do poema (que, aliás, parece ter sido poucas vezes lido com real
atenção) revela, mais do que as ambiguidades anteriores, a ambiguidade
fundamental do herói. Quando procuramos Diogo, encontramos Caramuru; quando
buscamos Caramuru, encontramos Diogo [...].
[...] Na
perspectiva da nossa formação histórica, Diogo-Caramuru é paradigma do encontro
das culturas, que compuseram a sociedade brasileira e dialogaram muitas vezes
em pé de igualdade, até que a ocidental predominasse em todos os setores, a
partir da segunda metade do século XVIII, quando o Morgado de Mateus proibiu o
uso da língua geral em São Paulo, seu último reduto em zona civilizada.
A esta altura, já Durão e os seus
contemporâneos se encontravam numa posição-chave, que permitiu interpretar e
sistematizar o passado com certa coerência. Se Diogo-Caramuru é ambíguo, é
porque o fomos, e talvez ainda o sejamos, sob o impacto de civilizações
díspares, à busca de uma síntese frequentemente difícil, mas que se torna
possível pela redução de muitas diferenças ao padrão básico da cultura
portuguesa, leito por onde fluímos e engrossamos, e que Diogo exprime, ao
exprimir a adaptação do branco à América.
Daí decorre uma
ambiguidade final, a mais saborosa para o historiador: é que a obra de Durão
pode ser vista tanto como expressão do triunfo português na América, quanto das
posições particularistas dos americanos; e serviria, em princípio, seja para
simbolizar a lusitanização do país, seja para acentuar o nativismo. [...] A
influência de Durão (formalmente antiquado e pouco lírico) se restringiu ao
setor indianista, onde, em compensação, foi maior, tanto nos gêneros em verso
quanto em prosa, como revela a análise da repercussão dos elementos do Caramuru
no temário e na própria maneira do Indianismo romântico.
Estas
considerações expõem o essencial do nosso tema, ou seja, por que se deu o
aproveitamento genealógico do Caramuru [...]. Significativamente, a faísca foi
acesa pelos franceses que se ocuparam do Brasil pela altura da Independência,
influindo em nossa vida intelectual e artística de maneira profunda e
duradoura, — umas vezes para bem, outras, para mal. Publicado em 1781, parece
que o Caramuru não foi aceito com entusiasmo, ou sequer simpatia; afirma-o, no
decênio de 1830, Costa e Silva, cujos dados, é certo, são frequentemente
duvidosos: "O Caramuru no seu aparecimento foi recebido com grande frieza
em Portugal, e ainda maior no Brasil".
[...]
François Eugène
Garay de Monglave — admirador, amigo e propagandista de Pedro I — planejou
traduzir uma série de vinte romances portugueses e brasileiros, a fim de
mostrar que também em nossa língua florescia o gênero mais afortunado junto ao
público de então.
Existem romances
portugueses e brasileiros? [...] "Sim, existem numerosos romances nessa
literatura portuguesa que mal conhecemos, e que no entanto se orgulha de ter
dado à Europa o seu primeiro épico moderno". "Os brasileiros (…)
podem opor, sem grande prejuízo, ao Último moicano, de Cooper, duas produções
que precederam de um século às do romancista dos Estados Unidos: o Caramuru, de
Santa Rita Durão, e o Uraguai, de Basílio da Gama."
[...]Lembremos
agora o modo por que o tema do Caramuru, depois de considerado manifestação
nacional, por excelência, foi devida mente explorado neste sentido, sofrendo
uma deformação que o adaptou às concepções do tempo. Refiro-me à escolha da
substância novelística, em lugar da propriamente épica, — o que o tornou mais
próximo e familiar à sensibilidade romântica, voltada para a ficção e o
lirismo. Observando este fato, podemos avaliar a importância do trabalho
realizado pelos franceses, — numa sequência coerente e progressiva, que, entre
1824 e 1830, preludiou, por assim dizer, a nossa ficção romântica.
[...]
* * *
O processo
descrito parece confirmar a hipótese inicial: na formação de uma consciência
literária de autonomia, eclodida com o Romantismo, o Caramuru, que teve então o
seu grande momento, desempenhou uma função importante, graças ao caráter de
paradigma, ressaltado pelos referidos escritores franceses. Isto foi possível,
em grande parte, por causa da natureza ambígua do poema, tanto na estrutura
quanto na configuração do protagonista. Daí terem podido os precursores
franceses e os 20 primeiros românticos brasileiros operar nele uma dupla
distorção, ideológica e estética. Ante um poema que poderia ser tomado, tanto
como celebração da colonização portuguesa, quanto como afirmação nativista das
excelências e peculiaridades locais, optaram pelo segundo aspecto, encarando a
obra como epopéia indianista e brasileira. De outro lado, no complexo estético
da epopéia, apegaram-se de preferência ao elemento novelístico e ao toque
exótico, vendo nela uma espécie de pré-romance indianista. O Uraguai, talvez
mais imitado e sem dúvida muito superior, teria influência sobretudo em sentido
lírico. ”
Bibliografia (Estrutura literária e função histórica [pág.177-199])
Bibliografia (Estrutura literária e função histórica [pág.177-199])
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