domingo, 4 de dezembro de 2016

Crítica Caramuru de Santa Rita Durão por Antonio Candido

    “ O herói de Durão se vincula tanto à tradição histórica quanto à linguística. [...] Fonte de civilização e fonte da nobreza local, Diogo se valeu de alegados direitos da mulher para obter e ceder à Coroa largos tratos de gleba. [...] Em resumo, o herói se comporta como um jovem adepto de São Luís Gonzaga, quebrado pela educação da contra-reforma e ajudado pelo amparo divino: Mas desde o Céu a Santa Inteligência Com doce inspiração mitiga a chama; Onde a amante paixão ceda à prudência, e a razão pode mais, que a ardente flama. (II, 83).
   
   Este comportamento exemplar acentua a sua mediocridade como personagem, isento de erros normais em heróis de epopéia, [...] da nossa colonização, o Caramuru confirma a regra. Durão celebra-a quando o domínio português no Brasil começava dar os primeiros sinais de declínio, e o próprio sistema colonial entrava em contradição com as realidades locais. [...] Mas convém sublinhar que Durão exaltava a obra colonizadora principalmente na medida em que era uma empresa religiosa, uma incorporação do gentio ao universo da fé católica.
    
   Entre os estímulos que o levaram a escrever o poema, talvez esteja o intuito de replicar ao Uraguai, de Basílio da Gama (1769), que apresentara a catequese dos jesuítas como acervo de iniquidades, dentro da linha de propaganda pombalina a que obedecia. Durão quis mostrar, ao contrário, que a civilização se identificava ao catolicismo e era devida ao catequizador, — em particular ao jesuíta. [...] Trata-se, portanto, de uma epopéia eminentemente religiosa, antipombalina, em que até na forma o autor se mostra passadista, ao repudiar o verso branco, tão prezado pelos seus contemporâneos, para voltar aos processos camonianos. [...]
   
    O segundo elemento básico é a visão grandiosa e eufórica da natureza do país, que funciona como cenário digno de grandes feitos e acrescenta mais uma dimensão às proporções da epopéia. A este propósito, convém estabelecer algumas correlações entre a técnica de Durão e o tópico do locus amoenus, estudado por Curtius. [...] No Caramuru, todavia, há uma generalização desta prática, pois o poeta amplia o lugar de maravilhas até fazê-lo coincidir com todo o país e, deste modo, descaracterizar a sua função [...], isto se vinha efetuando na visão que os portugueses manifestaram do Brasil, desde o século XVI [...].
   
    O terceiro elemento básico do Caramuru é o homem natural, o índio, que aparece vivendo, sob certos aspectos, num estado de pureza cuja perfeição o europeu admira, não custando ver que os seus princípios morais e a conduta decorrente são uma espécie de depuração dos ideais do branco (CANTO III) [...].

     A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; [...] Durão fez esta recomposição do mundo por meio de dados tomados de segunda mão aos cronistas, para chegar a uma certa visão. O seu princípio organizador (digamos pela última vez) foi a interpretação religiosa, que começa pela visão paradisíaca, sugere o problema do mérito do homem que desfruta o paraíso, sem estar para isto espiritualmente qualificado, e chega aos esforços para a justificação temporal deste paraíso, através da implantação da fé católica.  Estes elementos são vivificados, no plano da ação épica, pela presença de um personagem simbólico, que une as duas culturas, os dois continentes, as duas realidades humanas, — Diogo-Caramuru, — cuja caracterização permitirá completar a análise estrutural anterior e preparar o entendimento da função do poema. Neste sentido, enumeremos as seguintes hipóteses:

1) a importância da obra de Durão, no Romantismo, vem, sob certos aspectos, da ambiguidade da situação narrativa, em geral, e do herói, em particular;

2) da ambiguidade deste provém a sua força como personagem;

3) desta força provém o seu caráter de paradigma, graças ao qual pôde identificar-se, em plano profundo, à própria essência da civilização brasileira.
   
    Qualquer leitura atenta do poema (que, aliás, parece ter sido poucas vezes lido com real atenção) revela, mais do que as ambiguidades anteriores, a ambiguidade fundamental do herói. Quando procuramos Diogo, encontramos Caramuru; quando buscamos Caramuru, encontramos Diogo [...].
    
    [...] Na perspectiva da nossa formação histórica, Diogo-Caramuru é paradigma do encontro das culturas, que compuseram a sociedade brasileira e dialogaram muitas vezes em pé de igualdade, até que a ocidental predominasse em todos os setores, a partir da segunda metade do século XVIII, quando o Morgado de Mateus proibiu o uso da língua geral em São Paulo, seu último reduto em zona civilizada.
    
    A esta altura, já Durão e os seus contemporâneos se encontravam numa posição-chave, que permitiu interpretar e sistematizar o passado com certa coerência. Se Diogo-Caramuru é ambíguo, é porque o fomos, e talvez ainda o sejamos, sob o impacto de civilizações díspares, à busca de uma síntese frequentemente difícil, mas que se torna possível pela redução de muitas diferenças ao padrão básico da cultura portuguesa, leito por onde fluímos e engrossamos, e que Diogo exprime, ao exprimir a adaptação do branco à América.
   
     Daí decorre uma ambiguidade final, a mais saborosa para o historiador: é que a obra de Durão pode ser vista tanto como expressão do triunfo português na América, quanto das posições particularistas dos americanos; e serviria, em princípio, seja para simbolizar a lusitanização do país, seja para acentuar o nativismo. [...] A influência de Durão (formalmente antiquado e pouco lírico) se restringiu ao setor indianista, onde, em compensação, foi maior, tanto nos gêneros em verso quanto em prosa, como revela a análise da repercussão dos elementos do Caramuru no temário e na própria maneira do Indianismo romântico.
    
     Estas considerações expõem o essencial do nosso tema, ou seja, por que se deu o aproveitamento genealógico do Caramuru [...]. Significativamente, a faísca foi acesa pelos franceses que se ocuparam do Brasil pela altura da Independência, influindo em nossa vida intelectual e artística de maneira profunda e duradoura, — umas vezes para bem, outras, para mal. Publicado em 1781, parece que o Caramuru não foi aceito com entusiasmo, ou sequer simpatia; afirma-o, no decênio de 1830, Costa e Silva, cujos dados, é certo, são frequentemente duvidosos: "O Caramuru no seu aparecimento foi recebido com grande frieza em Portugal, e ainda maior no Brasil".
[...]
   
    François Eugène Garay de Monglave — admirador, amigo e propagandista de Pedro I — planejou traduzir uma série de vinte romances portugueses e brasileiros, a fim de mostrar que também em nossa língua florescia o gênero mais afortunado junto ao público de então.   
   
  Existem romances portugueses e brasileiros? [...] "Sim, existem numerosos romances nessa literatura portuguesa que mal conhecemos, e que no entanto se orgulha de ter dado à Europa o seu primeiro épico moderno". "Os brasileiros (…) podem opor, sem grande prejuízo, ao Último moicano, de Cooper, duas produções que precederam de um século às do romancista dos Estados Unidos: o Caramuru, de Santa Rita Durão, e o Uraguai, de Basílio da Gama."
  
    [...]Lembremos agora o modo por que o tema do Caramuru, depois de considerado manifestação nacional, por excelência, foi devida mente explorado neste sentido, sofrendo uma deformação que o adaptou às concepções do tempo. Refiro-me à escolha da substância novelística, em lugar da propriamente épica, — o que o tornou mais próximo e familiar à sensibilidade romântica, voltada para a ficção e o lirismo. Observando este fato, podemos avaliar a importância do trabalho realizado pelos franceses, — numa sequência coerente e progressiva, que, entre 1824 e 1830, preludiou, por assim dizer, a nossa ficção romântica.
[...]
                                                                              * * *

    O processo descrito parece confirmar a hipótese inicial: na formação de uma consciência literária de autonomia, eclodida com o Romantismo, o Caramuru, que teve então o seu grande momento, desempenhou uma função importante, graças ao caráter de paradigma, ressaltado pelos referidos escritores franceses. Isto foi possível, em grande parte, por causa da natureza ambígua do poema, tanto na estrutura quanto na configuração do protagonista. Daí terem podido os precursores franceses e os 20 primeiros românticos brasileiros operar nele uma dupla distorção, ideológica e estética. Ante um poema que poderia ser tomado, tanto como celebração da colonização portuguesa, quanto como afirmação nativista das excelências e peculiaridades locais, optaram pelo segundo aspecto, encarando a obra como epopéia indianista e brasileira. De outro lado, no complexo estético da epopéia, apegaram-se de preferência ao elemento novelístico e ao toque exótico, vendo nela uma espécie de pré-romance indianista. O Uraguai, talvez mais imitado e sem dúvida muito superior, teria influência sobretudo em sentido lírico. ”

Bibliografia (Estrutura literária e função histórica [pág.177-199])

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