quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Cartas Chilenas - Apresentação

As Cartas Chilenas, do gênero satírico, circularam manuscritas e anônimas em Vila Rica antes da Inconfidência Mineira, suscitando dúvidas sobre sua autoria durante mais de um século. 


A análise estilística do poema favorece a autoria de Gonzaga, porém Antonio Candido não descarta a hipótese de colaboração de Cláudio Manuel da Costa. Provavelmente, Gonzaga escreveu esse poema com o intuito de satirizar seu desafeto político, o Governador Luís da Cunha Meneses.

Contam-se treze cartas, em tom sarcástico, que relatam e criticam as façanhas do Fanfarrão Minésio (Cunha Meneses) em seu governo de violência, corrupção e autoritarismo, supostamente na capitania do Chile, país atribuído às narrativas das cartas (sendo, na verdade,  a capitania de Minas Gerais).

Na primeira carta, Critilo (Gonzaga)  remete a Doroteu (Manuel da Costa) a posse de Fanfarrão Minésio.

Pois se queres ouvir notícias velhas
50 -- Dispersas por imensos alfarrábios,
Escuta a história de um moderno chefe,
Que acaba de reger a nossa Chile,
Ilustre imitador a Sancho Pança.
E quem dissera, amigo, que podia
55 -- Gerar segundo Sancho a nossa Espanha!

Na segunda carta, Critilo fala a Doroteu sobre o fingimento de Fanfarrão no início de seu governo para ganhar a confiança do povo.

Apenas, Doroteu, o nosso chefe
65 -- As rédeas manejou, do seu governo,
Fingir-nos intentou que tinha uma alma
Amante da virtude. Assim foi Nero.
Governou aos romanos pelas regras
Da formosa justiça, porém logo
70 -- Trocou o cetro de ouro em mão de ferro.
Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas
De quantos presos as cadeias guardam,
Faz a muitos soltar e aos mais alenta
De vivas, bem fundadas esperanças.
75 -- Estranha ao subalterno, que se arroga
O poder castigar ao delinqüente
Com troncos e galés; enfim ordena
Que aos presos, que em três dias não tiverem
Assentos declarados, se abram logo
80 -- Em nome dele, chefe, os seus assentos.
Aquele, Doroteu, que não é santo,
Mas quer fingir-se santo aos outros homens,
Pratica muito mais, do que pratica
Quem segue os sãos caminhos da verdade.
85 -- Mal se põe nas igrejas, de joelhos,
Abre os braços em cruz, a terra beija,
Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,
Faz que chora, suspira, fere o peito,
E executa outras muitas macaquices
90 -- Estando em parte onde o mundo as veja.
Assim o nosso chefe, que procura
Mostrar-se compassivo, não descansa
Com estas poucas obras: passa a dar-nos
Da sua compaixão maiores provas.

Na terceira carta, Critilo relata as maldades que Fanfarrão fez por causa de uma cadeia que iniciou e a tristeza do povo com os acontecimentos.

Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!

Agora, Doroteu, ninguém passeia,
10 -- Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza, que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.
...
Pretende, Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da torre de Babel e mais dos grandes,
70 -- Custosos edifícios que fizeram,
Para sepulcros seus, os reis do Egito.

Na quinta e sexta cartas, Critilo relata a chegada de Carlota Joaquina, o casamento com D. João VI e críticas aos gastos absurdos com a corte portuguesa.

Trechos da quinta carta
30 -- Chegou à nossa Chile a doce nova
De que real infante recebera,
Bem digna de seu leito, casta esposa.
Reveste-se o baxá de um gênio alegre
E, para bem fartar os seus desejos,
35 – Quer que, a despesas do senado e povo,
Arda em grandes festins a terra toda.
...
Chega enfim o dia suspirado,
O dia do festejo. Todos correm
Com rostos de alegria ao santo templo;
Celebra o velho bispo a grande missa;
185 -- Porém o sábio chefe não lhe assiste
Debaixo do espaldar, ao lado esquerdo:
Para a tribuna sobe e ali se assenta.
Uns dizem, Doroteu, fugiu, prudente,
Por não ver assentados os padrecos
190 -- Na capela maior, acima dele.

Trecho da sexta carta
65 -- Aqui nada se vê que seja pobre.
Recreia, Doroteu, recreia a vista
O vário dos matizes; cega os olhos
O contínuo brilhar das finas pedras.

Na décima carta, Critilo relata as maiores desordens que Fanfarrão fez em seu governo.

Assim o nosso chefe não descansa
De fazer, Doroteu, no seu governo,
Asneiras sobre asneiras; entre as muitas,
Que menos violentas nos parecem,
25 -- Pratica outras que excedem muito e muito
As raias dos humanos desconcertos.
Perdoa, minha Nise, que eu desista
Do intento começado. Tu mil vezes
Nos meus olhos já leste os meus afetos,
30 -- Não careces de os ler nos meus escritos.
Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas
A contar as asneiras desumanas
Do nosso Fanfarrão ao caro amigo.
E tu, meu Doroteu, antes que leias
35 -- O que vou a contar-te, jurar deves
Pelos olhos da tua amada esposa,
Por seu louro cabelo, e pelo dia
Em que viste, na sua alegre boca,
O primeiro sorriso, que não hás de
40 -- Duvidar do que leres, bem que sejam
Desordens que pareçam impossíveis.
A Junta, Doroteu, a quem pertence
Evitar contrabandos, prende, envia
À sabia Relação do Continente
45 -- A trinta delinqüentes, para serem
Castigados conforme os seus delitos.
Entende o nosso chefe que esta Junta
Não devia mandar aos malfeitores
Sem sua autoridade, e dela toma
50 -- O mais estranho, bárbaro despique:
Manda embargar aos presos na cadeia
Do nosso Santiago, e manda ao pobre
Do condutor meirinho que os sustente,
Assistindo também aos que enfermarem
55 -- Com médicos, remédios e galinhas.
Acaba-se o dinheiro que lhe deram
Para fazer os gastos do caminho;

Referências bibliográficas
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1975.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia Ltda, 2000.
SUTTANA, Renato. Tomás Antônio Gonzaga: Duplo personagem. Rev. de Letras, n. 23 - Vol. 1/2, 2001. 1/2, 2001. Disponível em: http://www.revistadeletras.ufc.br/rl23Art04.pdf

O CARAMURU






O CARAMURU

Personagens
Diogo Álvares Correia - o Caramuru
Paraguaçu - filha do cacique Taparica
Gupeva e Sergipe - chefes indígenas
Moema - índia amante de Diogo.


 Tema Central e Enredo:
Caramuru é o nome dado ao português Diogo Álvares Correia que passa a viver entre os índios Tupinambás após sobreviver a um naufrágio no litoral baiano. Responsável por ensinar as leis e as virtudes aos "bárbaros" que aqui viviam, é considerado um herói "cultural". Ganha o respeito dos índios ao disparar uma arma de fogo, estes assustados, equiparam-no a Tupã e passam a respeitá-lo como uma entidade divina. Caramuru se encanta com Paraguaçu, a bela índia de pele branca. Depois de instalado na tribo, Diego percebe a possibilidade de difundir a fé cristã para os índios, doutrinando-os após encontrar uma gruta semelhante a uma igreja.
Mais adiante, Diego ajuda a resgatar a tripulação de um barco espanhol naufragado e vê a possibilidade de retornar à Europa através da nau francesa que viera resgatar aquela tripulação. Caramuru escolhe partir com Paraguaçu, deixando para trás as índias que haviam se apaixonado por ele, incluindo Moema, a mais bela, que se atira ao mar em direção ao navio na tentativa de alcançar o seu amado, protagonizando uma das cenas mais marcantes de nossa literatura. Chegando à Europa, Paraguaçu é rebatizada e passa a se chamar Catarina, onde recebe as honras da realeza lusitana.
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Moema (1866), por Victor Meireles


Estrutura da obra:

Com o intuito de “compor uma Brasilíada”, Frei de Santa Rita Durão estrutura “Caramuru” seguindo os passos de Camões. O modelo formado por dez cantos de versos decassílabos dispostos em estrofes fixas e oitavas com esquema de rimas abababcc nos mostra a grande influência da mitologia grega em sua estrutura. A obra pertence ao gênero épico ou epopeia, do grego épos que significa “palavra, notícia ou discurso”, que é constituído por cinco partes: proposição, invocação, dedicação, narração e epílogo. Com textos narrativos em prosa ou em versos, relatam acontecimentos heroicos, revoluções sociais, fundações de cidades, descobertas de continentes, para tanto, menciona fatos brilhantes, determinados heróis e realizações grandiosas. Não por acaso, o subtítulo da obra, Poema épico do descobrimento da Bahia, que remonta ao tempo em que os primeiros europeus chegaram ao Brasil e travaram contato com os nativos.  

Apreciação crítica

Canto I

Nas primeiras estrofes tem-se a introdução da terra a ser cantada e do herói, propondo narrar seus feitos, sob a invocação do auxílio de Deus e pedindo atenção para o Brasil, principalmente a seus habitantes primitivos, dignos e capazes de serem integrados à civilização cristã. Se isso for feito, prevê Portugal renascendo no Brasil.

I
De um varão em mil casos agitado,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o Recôncavo afamado
Da capital brasílica potente:
Do Filho do Trovão denominado,
Que o peito domar soube à fera gente;
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte

II
Nele vereis Nações desconhecidas,
Que em meio dos Sertões a Fé não doma;
E que puderam ser-vos convertidas
Maior Império, que houve em Grécia, ou Roma:
Gentes vereis, e Terras escondidas,
Onde se um raio da verdade assoma,
Amansando-as, tereis na turba imensa
Outro Reino maior que a Europa extensa

A partir da nona estrofe o poeta traz a narração no naufrágio de Diogo Álvares Correia, do qual apenas este e mais sete companheiros sobrevivem. Descreve o contato português com os nativos, seus receios diante das criaturas antropofágicas e despudoradas.

XIII
Sete somente do batel perdido
Vêm à praia cruel, lutando a nado;
Oferece-lhes um socorro fementido
Bárbara multidão, que acode ao brado:
E ao ver na praia o Benfeitor fingido,
Rende-lhe as mãos o náufrago enganado:
Tristes! que a ver algum, qual fim o espera
Com quanta sede a morte não bebera!

O índio como o outro, objeto de colonização e catequese, perde no Caramuru toda a autenticidade étnica e regride ao zero do espanto enquanto antropofágico e da edificação religiosa.

XVII
Correm depois de crê-lo ao pasto horrendo;
E retalhando o corpo em mil pedaços,
Vai cada um famélico trazendo,
Qual um pé, qual a mão, qual outro os braços:
Outros da crua carne iam comendo;
Tanto na infame gula eram devassos:
Tais há, que as assam nos ardentes fossos,
Alguns torrando estão na chama os ossos.

XVIII
Que horror da Humanidade! ver tragada
Da própria espécie a carne já corrupta!
Quanto não deve a Europa abençoada
A Fé do Redentor, que humilde escuta?
Não era aquela infâmia praticada
Só dessa gente miseranda, e bruta;
Roma, e Cartago o sabe no noturno
Horrível sacrifício de Saturno.

Um dia, excetuando-se Diogo, que ainda estava enfermo e fraco, os outros seis são encaminhados para os fossos em brasa. Todavia , quando iam matar os náufragos, a tribo do Tupinambá Gupeva é ferozmente atacada por Sergipe. Após sangrenta luta, muitos morrem ou fogem; outros se rendem ao vencedor que liberta os pobres homens que desaparecem, no meio da mata, sem deixar rastro.

Canto II
Enquanto a luta se desenvolve, Diogo, magro e enfermo para a gula dos canibais, veste a armadura e, munido de fuzil e pólvora, sai para ajudar os seis companheiros que serão comidos. Na fuga, muitos índios buscam esconderijo na gruta, inclusive Gupeva que, ao se deparar com o lusitano, cai prostrado, tremendo; os que o seguiam fazem o mesmo; todos acham que o demônio habita o fantasma-armadura.

VIII
Disse; e entrando na sólita caverna,
Cobre de ferro a valerosa fronte;
Um peito d’aço de firmeza eterna,
E o escudo, onde a frecha se desponte.
Dispõe de modo, e em forma tal governa,
Que nada teme já, que em campo o afronte:
Nas mãos de ferro tinha uma alabarda,
A espada à cinta, aos ombros a espingarda.
IX
Saía assim da gruta, quando o monte
Coberto vê da bárbara caterva;
E no que infere da turbada fronte,
Sinais de fuga, e de derrota observa:
A algum obriga o medo, a que trasmonte;
Outros se escondem pelo mato, ou erva;
Muitos fugindo vêm com medo à morte,
Crendo achar na caverna um lugar forte.

Álvares Correia, que já conhecia um pouco a língua dos índios, espera amansá-los com horror e arte. Convida Gupeva a tocar a armadura e o capacete. Observa, amigavelmente, que tudo aquilo o protege, afastando o inimigo, desde que não se coma carne humana. Ainda aterrorizado, o chefe indígena segue-o para dentro da gruta, onde Diogo acende a candeia, levando-o a crer que o náufrago tem poder nas mãos. Sob a luz, vê, sem interesse, tudo que o branco retirara da nau. Aqui, o poeta, louva a ausência de cobiça dessa gente. Entre os objetos guardados pelos náufragos, Gupeva encanta-se com a beleza da virgem em uma gravura.Tão bela assim não seria a esposa de Tupã? Ou a mãe de Tupã? Nesse momento, encantado pela intuição do bárbaro, Diogo o catequiza, ganhando-lhe, assim a dedicação.
XXVI
Acesa luz na lôbrega caverna,
Vê-se o que Diogo ali da nau levara;
Roupas, armas, e, em parte mais interna,
A pólvora em barris, que transportara,
Tudo vão vendo à luz de uma lanterna,
Sem que o apeteça a gente nada avara,
Ouro, e prata, que a inveja não lhe atiça:
Nação feliz! que ignora o que é cobiça.

XXVII

Mas entre objetos vários a que atende,
Nota Gupeva extático a Pintura,
Que num precioso quadro, que ali pende,
Representava a Mãe da formosura:
Se seja coisa viva, não entende;
Mas suspeitava bem pela figura,
Digna a pessoa, de que a Imagem era,
De ser mãe de Tupã, se ele a tivera.

XXVIII

Esta (pergunta o Bárbaro) tão bela,
Tão linda face, acaso representa
Alguma formosíssima Donzela,
Que esposa o grão-Tupá fazer intenta?
Ou por ventura que nascesse dela,
Esse, que sobre os Céus no Sol se assenta?
Quem pode geração saber tão alta?
Mas se há Mãe, que o gerasse, esta é sem falta.

Saindo da gruta, o índio, agora manso e diferente, fala a seu povo Tupinambá, ao redor da gruta. Conta-lhes sobre o feito do emboaba, Diogo, e que Tupã o mandara para protegê-los. Para banquetear o amigo, saem para caçar. Durante o trajeto, Álvares Correia usa a espingarda, aterrorizando a todos que exclamam e gritam: Tupã Caramuru! Desde esse dia, o herói passa a ser o respeitado Caramuru - Filho do Trovão. Querendo terror e não culto, Diogo afirma-lhes que, como eles, é filho de Tupã e a este, também, se humilha. Mas que como filho do trovão, (dispara outro tiro) queimará aquele que negar obediência ao grande Gupeva.
XLI
Mais arma não levou, que uma espingarda;
E posto ao lado de Gupeva amigo,
Pronto a todo o acidente, e posto em guarda,
Traz na cautela o escudo ao seu perigo.
Em tanto a destra gente a caça aguarda,
E algum se afouta a penetrar no abrigo,
Onde esconde a Pantera os seus cachorros,
Outro a segue por brenhas, e por morros.
...
XLIII
Não era assim nas aves fugitivas,
Que umas frechava no ar, e outras em laços
Com arte o Caçador tomava vivas:
Uma porém nos líquidos espaços
Faz com a pluma as festas pouco ativas,
Deixando à lisa pena os golpes laços.
Toma-a de mira Diogo, e o ponto aguarda:
Dá-lhe um tiro, e derriba-a co’a espingarda.
...
L
Tal pensamento então n’alma volvia
O grão-Caramuru, vendo prostrada
A rude multidão, que Deus o cria,
E que espera desta arte achar domada:
Política infeliz da Idolatria,
Donde a antiga cegueira foi causada;
Mas Diogo, que abomina o feio insulto,
Quando aumenta o terror, recusa o culto.
LI
De Tupá sou (lhe disse) Onipotente
Humilde escravo, e como vós me humilho;
Mas do horrendo trovão, que arrojo ardente,
Este raio vos mostra, que eu sou filho.
(Disse, e outra vez dispara em continente)
Do meio do relâmpago, em que brilho,
Abrasarei qualquer, que ainda se atreva
A negar a obediência ao grão-Gupeva.

Nas estrofes seguintes, o poeta descreve os costumes da selva. Caramuru instala-se na aldeia, onde imensas cabanas abrigam muitas famílias, que vivem em harmonia. Muitos índios querem vê-lo, tocá-lo. Outros, em sinal de hospitalidade, despem-no e colocam-no sobre a rede, deixando-o tranquilo. Paraguaçu é uma índia de pele branca e traços finos e suaves. Apesar de não amar Gupeva, está na tribo por ter-lhe sido prometida. Como sabe a língua portuguesa, Diogo quer vê-la. Após o encontro os dois estão apaixonados.
LXX
Mas eis que um grande número o rodeia
De emplumados feiíssimos Salvagens:
Ouve-se a casa de clamores cheia;
Costume antigo seu nas hospedagens.
Qualquer chegar-se a Diogo ainda receia,
Por ter visto as horríficas passagens;
Mas mair ma apadu de longe explicam,
E bem-vindo o estrangeiro significam.
LXXI
Por costumado obséquio os mais luzidos
Tomam Diogo nos braços; e no peito
A frente lhe apertavam comedidos:
Sinal entr’eles do hospital respeito.
Tiram-lhe em pressa as roupas, e vestidos;
E pondo-o sobre a rede, como em leito,
Sem mais dizer-lhe nada, e sem ouvi-lo,
Tudo se afasta, e deixam-no tranqüilo.
LXXII
Com maior cerimônia outra visita
Festiva celebrava o seu cortejo;
Femínea turba, que o costume incita
A oferecer-se honesta ao seu desejo;
Senta-se sobre os pés, e felicita,
Cobrindo o rosto a mão, como por pejo;
Vestidas vêm de folhas tão brilhantes,
Que o que falta ao valor, têm de galantes.
...
LXXXIV
No raio deste heróico pensamento
Em tanto Diogo refletiu consigo,
Ser para a língua um cômodo instrumento
Do Céu mandado na donzela amigo:
E por ser necessário ao Santo intento,
Estuda no remédio do perigo,
Que pode ser? sou fraco: ela é formosa...
Eu livre... ela donzela... será esposa.
LXXXV
Bela (lhe disse então) gentil Menina,
(Tornando a si do pasmo, em que estivera)
Sorte humana não é, mas é Divina,
 Ver-me a mim; ver-te a ti na nova esfera:
Ela a frase, em que falo, aqui te ensina;
Ela, se não me engana o que a alma espera,
Um fogo em nós acende, que de resto
Eterno haja de arder, se arder honesto.
LXXXVI
Desde hoje se a meus olhos corresponde
O meigo olhar das lúcidas pupilas;
Se amor é... porque amor quem é que o esconde,
Se por ele essas lágrimas destilas:
Com que chamas meu peito te responde,
Com mão de Esposa poderás senti-las;
Disse; e estendendo a mão, ofereceu-lha;
Ela que nada diz, sorriu-se, e deu-lha.

Canto III

À noite, Gupeva e Diogo conversam sob a tradução feita por Paraguaçu. O lusitano fica pasmo ao saber que, para o chefe da tribo, existe um princípio eterno; há alguém, Tupã, ser possante que rege o mundo; aquele que vence o nada, criando o universo. O espírito de Deus, de alguma maneira, comunica-se com essa gente. Gupeva eloqüente fala acerca da concepção dos selvagens sobre o tempo, o Céu, o Inferno. Abordam a lenda da pregação de S. Tomé em terras americanas. Concluindo a conversa, o cacique diz que estão para ser atacados pelos inimigos; Caramuru aconselha-o a ter calma. De repente, chegam os ferozes índios Caetés que, ao primeiro estrondo do mosquete, batem em retirada, correndo, caindo; achando, enfim, que o céu todo lhes cai em cima.
II
Só com Gupeva a Dama, e com Diogo
Gostosa aos dois de intérprete servia;
E perguntado sobre o Sacro fogo,
A qual fim se inventara? a que servia?
Deu-lhe simples razão Gupeva logo:
Supre de noite (disse) a luz do dia;
E como Tupá ao Mundo a luz acende,
Tanto fazer-se aos hóspedes empreende.

...

VI
A chuva, a neve, o vento, a tempestade
Quem a rege? a quem segue? ou quem a move?
Quem nos derrama a bela claridade?
Quem tantas trevas sobre o Mundo chove?
E este espírito amante da verdade,
Inimigo do mal, que o bem promove,
Cousa tão grande, como fora obrada,
Se não lhe dera o ser, quem vence o nada?
VII
Quem seja este grande Ente, e qual seu nome,
(Feliz quem saber pode) eu cego o ignoro;
E sem que a empresa de sabê-lo tome,
Sei que é quem tudo faz, e humilde o adoro:
Nem duvido que os Céus, e Terra dome,
Quando nas nuvens com terror o exploro,
Deixando o mortal peito em vil desmaio,
Ameaçar no trovão, punir no raio.

Canto IV

O temido invasor noturno é o Caeté, Jararaca, que ama Paraguaçu perdidamente. Ao saber que ela esta destinada a Gupeva, declara guerra. Após o ataque estrondoso do Filho do Trovão, Jararaca convoca outras nações indígenas com as quais tinha aliança: Ovecates, Petiguares, Carijós, Agirapirangas, Itatis. Conta-lhes que Gupeva prostrou-se aos pés de um emboaba pelo pouco fogo que acendera, oferecendo-lhe até a própria noiva. O cacique alerta-os que, se todos agirem dessa forma, correm o risco de serem desterrados e escravizados em sua própria terra, enchendo de emboabas a Bahia. Apela para a coragem dos nativos, dizendo que apesar do raio do Caramuru ser verdadeiro, ele nada teme, porque não vem de Deus. Não há forças fabricadas que a eles destruam. A guerra tem início e Paraguaçu também luta heroicamente e, num momento de perigo, é salva pelo amado lusitano.

I
Era o invasor noturno um Chefe errante,
Terror do Sertão vasto, e da marinha,
Príncipe dos Caetés, Nação possante,
Que do grão-Jararaca o nome tinha:
Este de Paraguaçu perdido amante,
Com ciúmes da donzela, ardendo vinha:
Ímpeto que à razão, batendo as asas,
Apaga o claro lume, e acende as brasas.
...
LXXXIII
Enquanto entrava o bárbaro, e na luta
Um, e outro se abraça; o forte Diogo
Que o caso da sua bela infausto escuta,
Toma a espingarda, e parte em fúria logo:
Qual pólvora encerrada dentro à gruta,
Quando na oculta mina se deu fogo,
Arroja penha, e monte, e o que tem diante;
Tal se envia em furor o aflito amante.
LXXXIV
Tinha afogado Pessicava em tanto
A Amazona infeliz, e a mão lançava
Já de Paraguaçu, que no quebranto
Apenas levemente respirava:
E eis que inventando Diogo um novo espanto,
Traz um tambor, que horrísono soava;
E logo que o arcabuz com bala atira,
Cai Pessicava, e morde o chão com ira.
LXXXV
Mais não espera a tímida manada,
Ouvindo o estrondo, e os hórridos efeitos:
Quem parte logo em fúria declarada;
E quem lhe rende humilde os seus respeitos:
Paraguaçu porém desassombrada,
Sendo os contrários com terror desfeitos,
Acordou num suspiro, e solta viu-se;
E conhecendo Diogo, olhou-o, e riu-se.

Canto V

Depois da batalha, os amantes discorrem sobre o mal que habita o ser humano e qual a razão de Deus para permiti-lo. Em seguida, em Itaparica, o herói faz com que todos os índios se submetam a ele, destruindo canoas com as quais Jararaca pretendia liquidá-lo.

VI
Quantos criar pudera que o servissem,
Deixando de criar quem o agravasse;
Onde todos a vê-lo ao Céu subissem,
E as obras que produz todas salvasse?
Nossos pais se dos filhos tal previssem,
Quanto fora cruel quem os gerasse?
E creremos da excelsa grã-Bondade
Que ceda a nossos Pais na humanidade?
VII
Segredos são (diz Diogo) da inescrutável
Majestade de Deus: que saberemos
Do seu modo de obrar sempre inefável,
Se o que somos, e obramos não sabemos?
Faltando-nos razão clara, e provável
Nos conselhos de Deus, que ocultos vemos,
É bem que toda a dúvida se acabe,
Porque ele pode mais, do que o Homem sabe.
...
XLV
Confusas entre si vão flutuando
As canoas, que a Gente não regia;
E uma vai sobr’outras embarrando
Na desordem, que todas confundia:
As três incendiárias arrojando,
Um Dilúvio de fogo n’água ardia,
Com tal fumaça nas ardentes fráguas,
Que cobrindo-se o ar, fervem as águas.
XLVI
Qual, se na Selva densa o fogo ateia,
Em colunas de fumo voa a chama,
E a lavareda, que pelo ar ondeia,
Traspassando se vai de rama em rama:
Tal na Bahia de canoas cheia
Um Dilúvio de fogo se derrama;
E o bárbaro de horror, de espanto, e mágoa
Foge à morte do fogo, e escolhe a d’água.
Canto VI

O amor de Diogo a Paraguaçu é demonstrado quando este rejeita a oferta feita pelos chefes indígenas que lhe são oferecidas, aceitando, todavia o parentesco.

VI
Paraguaçu porém com fé de Esposo
Parecia estimar distintamente,
Mostrando-lhe no afeto carinhoso
A sincera afeição que n’alma sente:
Amava nela o peito valeroso,
E o gênio dócil, com que à fé consente;
Amor que ocasionou, como é costume,
Em algumas inveja, e noutras ciúme.

O momento ritualístico da conversão de Paraguaçu embora só venha a se concretizar na França, tem seu início simbólico ainda no Brasil, com a morte de Moema, que por vezes parece simbolizar a parte selvagem de Paraguaçu. Moema segue, a nado, a embarcação que leva Diogo e Paraguaçu e agarrada ao leme, brada todo seu amor não correspondido ao esquivo e cruel Caramuru, até o limite de suas forças.

XXXVI
É fama então que a multidão formosa
Das Damas, que Diogo pretendiam,
Vendo avançar-se a nau na via undosa,
E que a esperança de o alcançar perdiam:
Entre as ondas com ânsia furiosa
Nadando o Esposo pelo mar seguiam,
E nem tanta água que flutua vaga
O ardor que o peito tem, banhando apaga.

XXXVII
Copiosa multidão da nau Francesa
Corre a ver o espetáculo assombrada;
E ignorando a ocasião da estranha empresa,
Pasma da turba feminil, que nada:
Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela, do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme

XXXVIII
Bárbaro (a bela diz) Tigre, e não homem...
Porém o Tigre por cruel que brame,
Acha forças amor, que enfim o domem;
Só a ti não domou, por mais que eu te ame:
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquele infame?
Mas pagar tanto amor com tédio, e asco...
Ah que o corisco és tu... raio... penhasco

XLI
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente, com que aos meus respondas:
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;
Dispara sobre mim teu cruel raio...
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

XLII
Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as falsas escumas desce ao fundo:
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo;
Ah Diogo cruel! disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.

Canto VII

Chegando à França, o casal é recebido na corte e Paraguaçu é batizada e seu nome passa a ser Rainha Catarina de Médicis, mulher de Henrique II, que lhe serve de madrinha.

XVIII
À roda o Real Clero, e grão-Jerarca
Forma em meio à Capela a Augusta linha;
Entre os Pares seguia o bom Monarca,
E ao lado da Neófita a Rainha.
Vê-se cópia de lumes nada parca,
E a turba imensa, que das guardas vinha;
E dando o nome a Augusta à nobre Dama,
Põe-lhe o seu próprio, e Catarina a chama.

XIX
Banhada a formosíssima Donzela
No Santo Crisma, que os Cristãos confirma,
Os Desposórios na Real Capela
Com o valente Diogo amante firma:
Catarina Álvares se nomeia a bela,
De quem a glória no troféu se afirma,
Com que a Bahia, que lhe foi Senhora,
Noutro tempo, a confessa, e fundadora.

Diogo descreve aos monarcas franceses tudo o que sabe a respeito da flora e fauna brasileira, suas riquezas e importância para a vida da colônia e dos indígenas.

XXVI
O mais rico, e importante vegetável
É a doce cana, donde o açúcar brota,
Em pouco às nossas canas comparável;
Mas nas do milho proporção se nota:
Com manobra expedita, e praticável,
Espremido em moenda o suco bota,
Que acaso a antiguidade imaginava,
Quando o néctar, e ambrosia celebrava.

XXVIII
É sustento comum, raiz prezada,
Donde se extrai, com arte útil farinha,
Que saudável ao corpo, ao gosto agrada,
E por delícia dos Brasis se tinha.
Depois que em bolandeiras foi ralada,
No Tapiti se espreme, e se convinha,
Fazem a puba então, e a tapioca,
Que é todo o mimo, e flor da mandioca.
...
XXX
Ervilhas, feijão, favas, milho, e trigo,
Tudo a terra produz, se se transplanta;
Fruta também, o pomo, a pêra, o figo
Com bífera colheita, e em cópia tanta:
Que mais que no País que o dera antigo,
No Brasil frutifica qualquer planta;
Assim nos deu a Pérsia, e Líbia ardente,
Os que a nós transplantamos de outra Gente.

Canto VIII

Na viagem de volta ao Brasil, Catarina-Paraguaçu profetiza, prospectivamente, o futuro da nação, visão esta que é recebida com admiração e confiança apor todos que a ouviam, como sendo mensagem enviada por Deus a Paraguaçu.

XVII
Pasmado Diogo, e a multidão, que a ouvia,
Calam todos no assombro de admirados,
Nem já duvidam que visão seria,
Em que ouvira os mistérios revelados:
Quando ocultos segredos Deus confia,
Não devem ser (diz Diogo) propalados:
Mas se em parte, como este, é manifesto,
Temerário não sou, se inquiro o resto.

XVIII
Narra-nos, feliz alma, a visão bela,
Quem sabe se por ti nos manda aviso
A Providência, que ao governo vela,
Do mortal nos seus fins sempre indeciso:
Não nos cales em tanto o que revela
Por nosso lume, o excelso Paraíso,
E a nossos rogos com memória pronta,
Dizendo quanto viste, tudo conta.

O grandioso papel da religião na conquista do território, na expansão da fé católica e da cristandade é mais uma vez propagado, não se isolando da empreitada das navegações.

LXXVI
Nem mais a espada, e bomba pavorosa
Se ouvirá na Marinha, e Sertão vasto,
A voz só do Evangelho poderosa,
Simples, sem artifício, indústria, ou fasto:
A semífera Gente viciosa
No jugo conterá de um temor casto;
E às mãos dos seus Apóstolos se avista,
Com as armas da Cruz feita a conquista.

Canto XIX

Prosseguindo em seu vaticínio, Catarina-Paraguaçu descreve a luta contra os holandeses que termina com a restauração de Pernambuco.

LXIII
Horroriza-se Holanda, pasma Europa,
Exalta Portugal, canta a Bahia,
Vendo-se triunfar tão pouca tropa
Da terrível potência, que a invadia:
Nada de humano o pensamento topa,
Que em tudo a mão de Deus clara se via,
Pois sempre elege para os seus portentos
Os mais fracos, e humildes instrumentos.
...
LXXVII
Triunfou Portugal; mas castigado,
Teve em tal permissão severo ensino,
Que só se logrará feliz reinado,
Honrando os Reis da terra ao Rei Divino:
E que o Brasil aos Lusos confiado,
Será, cumprindo os fins do alto destino,
Instrumento talvez neste Hemisfério,
De recobrar no Mundo o antigo Império

Canto X

A ligação entre Diogo e Paraguaçu, em toda a obra, revela a importância da religião no descobrimento do Brasil, exaltando o trabalho da catequese que foi aplicado na colonização.

XXIV
Escolha faz nas Tabas numerosas
Dos que acha no trabalho mais ativos;
Mas guarda para empresas belicosas
Os que em ferócia reconhece altivos:
A todos com maneiras amorosas
Propõe da Fé Cristã claros motivos;
E a condição notando em cada raça,
Uns doma com terror, outros com graça

O trabalho dos missionários é aqui valorizado e engrandecido, numa grande exaltação. A contribuição das missões para a expansão da fé cristã no Brasil colônia é tida como um grande exemplo a ser seguido pela sociedade.

LVI
Muitos destes ali, velando pios,
Dentro às tocas das árvores ocultos,
Sofrem riscos, trabalhos, fomes, frios,
Sem recear os bárbaros insultos:
Penetram matos, atravessam rios,
Buscando nos terrenos mais incultos
Com imensa fadiga, e pio ganho
Esse perdido mísero rebanho.

LVII
Mais de um verás pela campanha vasta
Derramar pela Fé ditoso sangue;
Quem morto às chamas o Gentio arrasta,
Quem deixa a seta com o tiro exangue:
Vê-los-ás discorrer de casta em casta,
Onde o rude Pagão nas trevas langue;
E ao Céu lucrando as miseráveis almas,
Carregados subir de ínclitas palmas.

A visão profética de Catarina-Paraguaçu acaba se transformando na Virgem sobre a criação do universo. O retorno do casal é cercado de pompa, desde a recepção pala caravela de Carlos V, que agradece a Diogo o socorro aos náufragos espanhóis, até a cerimônia realizada na Casa da Torre, que revela o casal revestido na realeza da nação espanhola.

XLII
Observou-a Diogo na cabana
Tratada dos Tupis com reverência,
Estimando-a por cousa mais que humana,
Que excedia dos seus a inteligência:
Surpreendeu-se da Imagem soberana
O Lusitano Herói: e à competência
Com eles venerando a Mãe Divina,
Chama a vê-la a piedosa Catarina.

XLIII
Pôs-lhe os olhos a Dama; e transportada:
Esta é (disse) é esta a grã-Senhora,
Que vi no doce sonho arrebatada,
Mais que o Sol pura, mais gentil que a aurora:
Eis aqui! esta é a Imagem venerada:
Este era aquele roubo: entendo agora:
Oh minha grande sorte! Oh imensa dita!
Isto me quis dizer a Mãe bendita.

A penúltima estrofe canta a preservação da liberdade do índio e a responsabilidade do reino para com a divulgação da religião cristã entre eles.

LXXVI
Que o indígena seja ali empregado,
E que à sombra das Leis tranqüilo esteja;
Que viva em liberdade conservado,
Sem que oprimido dos Colonos seja:
Que às expensas do Rei seja educado
O Neófito, que abraça a Santa Igreja;
E que na santa empresa ao Missionário
Subministre subsídio o Régio Erário.

O poema acaba com o decreto real que concede à Diogo e Catarina, as honras da colônia lusitana.

LXXVII
Por fim publica do Monarca reto,
Em favor de Diogo, e Catarina,
Um Real honorífico Decreto,
Que ao seu merecimento honras destina:
E em recompensa do leal afeto,
Com que a coroa a Dama lhe confina,
Manda honrar na Colônia Lusitana,